igura contraditória e polêmica - mas de capital importância no contexto da Igreja primitiva - pouco se sabe dos dados biográficos de Tertuliano, em especial as datas de nascimento e morte. Sabe-se apenas que, como boa parte dos Pais da Igreja, Tertuliano era africano, nascido em Cartago (estima-se que por volta do ano 155 d.C.), e segundo Jerônimo relata, era filho de um centurião, o mais alto grau que um não romano podia atingir na hierarquia político-militar romana. Os cartagineses, desde os tempos de Aníbal e das Guerras Púnicas, 3 séculos antes de Cristo, nutriam uma especial aversão a Roma, e o cristianismo, nos seus primórdios, foi um fator aglutinador também do sentimento anti-romano. É nesse contexto que nasceu e viveu Tertuliano. Outra certeza que se tem a respeito dele é que suas obras foram escritas entre os últimos anos do século II e as duas primeiras décadas do século III.
O evangelho chegou à África provavelmente logo após o Pentecostes, já que, entre os ouvintes de Pedro naquele dia havia alguns judeus que habitavam “no Egito e em partes da Líbia” (Atos 2:10), e escavações na cidade de Hadrumeto (hoje na Tunísia) descobriram um cemitério judaico em que havia túmulos cristãos datados dos anos 50 e 60 d.C. O historiador Paul Johnson descreve a Igreja de Cartago como “entusiasmada, imensamente corajosa, completamente desafiadora perante as autoridades seculares, muito perseguida, intransigente, intolerante, virulenta e, de fato, violenta em suas controvérsias. Há evidências de que Cartago e outras áreas do litoral africano tenham sido evangelizadas por essênios e zelotes cristãos, demonstrando, desde o princípio, uma tradição de militância e resistência à autoridade e à perseguição. Tertuliano corporificava essa tradição.” (“História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001, pág. 63). A igreja africana, apesar das grandes contribuições que trouxe à Igreja primitiva, era conhecida pela sua combatividade prática e por seu silêncio literário, já que pouco se escrevia a seu respeito, talvez em função da forte perseguição das autoridades romanas. O primeiro documento que se conhece da Igreja africana são as Atas dos mártires de Scilli – sete homens e cinco mulheres – que foram condenados pelo procônsul de Cartago a “morrer pela espada” em 17 de julho de 180. Os mártires de Scilli (um povoado pequeno e nunca mais identificado) conheciam e usavam uma tradução latina das cartas de Paulo, que levavam consigo numa “capsa” (caixa), e as Atas de seu martírio são referidas por Tertuliano em sua obra “Ad Scapulam 3” (vide trecho em destaque abaixo), o que comprova a forte influência que recebeu da primitiva Igreja africana. O fato dos mártires se valerem da versão latina das cartas paulinas revela outra faceta da Igreja africana: embora, muito provavelmente, tenha sido formada a partir das Igrejas orientais, foi nos laços com Roma que ela se solidificou, abandonando, pouco a pouco, suas referências helênicas.
UM TRECHO DE “OS MÁRTIRES DE SCILLI”
Saturnino leu a sentença na tabula: “Speratus, Nartzalus, Cittinus, Donata, Vestia, Secunda e todos os outros confessaram que vivem segundo o rito cristão. Visto que lhes foi oferecido o retorno à religião romana, e eles o recusaram com obstinação, nós os condenamos a morrer pela espada”.
Speratus: “Nós damos graças a Deus”.
Sabe-se que Tertuliano recebeu sólida formação intelectual, sobretudo em direito e retórica, e, muito provavelmente, foi em Roma que viveu boa parte de seus estudos e primeiros passos na vida profissional, ainda jovem. Tertuliano teve uma juventude tempestuosa, pelo que se depreende de seus escritos. Chegou a se casar e supõe-se, com boa dose de certeza, que foi o exemplo dos mártires, não só os de Scilli, mas os de outras tantas perseguições perpetradas pelos romanos, que foi decisivo na conversão de Tertuliano, aos 40 anos de idade, que imediatamente integrou-se à já sólida Igreja africana, levando a ela o seu fervor de neófito, a sua genialidade e a instabilidade do seu temperamento, que não raro o fazia cometer excessos.
O historiador Paul Johnson chama Tertuliano de “um mestre da prosa, a prosa do retórico e do polemista. Estava em casa tanto no latim quanto no grego, mas costumava fazer uso do primeiro – o primeiro teólogo cristão a fazê-lo. Sua influência, de fato, foi imensa, precisamente por ter criado uma latinidade eclesiástica, dotou-os de sentenças inesquecíveis e influentes: ‘o sangue dos mártires é a semente da igreja’; ‘a unidade dos hereges é o cisma’, ‘creio porque é absurdo’ (“História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001, pág. 63). Fortemente anti-gnóstico, foi Marcião o seu primeiro adversário nesta seara, a quem deplorava suas tentativas de conciliar a doutrina cristã com a filosofia grega: “o que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que relação há entre a Academia e a Igreja? O que os hereges têm com os cristãos? Nossas instruções vêm do pórtico de Salomão, que ensinou, ele mesmo, que o Senhor deve ser procurado na simplicidade de coração. Fora com todas as tentativas de criar um cristianismo estóico, platônico e dialético!” (citado por Paul Johnson, ob. cit.). Contra Marcião, Tertuliano revela também o seu estilo irônico, ou, porque não dizer, sarcástico: “Quem sois vós? Desde quando existis? Quem vos deu o direito, ó Marcião, de serdes lenhador no meu bosque? Essa terra é minha, tenho os títulos autênticos, recebidos dos proprietários, a quem essa terra pertenceu: sou herdeiro dos apóstolos” (citado por Adalbert – G. Hamman em “Os Padres da Igreja”, Ed. Paulus, 1995, pág. 72).
O Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs (Ed. Paulus e Ed. Vozes, 2002, págs. 1348/9) traz uma lista de suas principais obras, dividindo-as em três categorias - os escritos apologéticos, os doutrinais e os polêmicos - mas estabelecendo uma ordem cronológica:
“A 197 remontam as duas obras apologéticas mais conhecidas, o “Ad nationes” em 2 livros e o “Apologeticum”, dirigidas contra as acusações dos pagãos à nova religião; nelas a defesa e a ilustração dos costumes e das doutrinas cristãs se alternam com o ataque à conduta e às crenças dos gentios. Incerta é a colocação do “Ad martyras”, breve, mas intensa exortação aos co-irmãos para que afrontem corajosamente a perseguição. Esta está posta no início de 197 ou no curso deste mesmo ano ou em 200-203: nesse caso, os destinatários seriam os mártires conhecidos através de um outro documento antigo, a “Passio Perpetuae et Felicitatis”, um texto atribuído às vezes, pelo redator, ao próprio Tertuliano... não menos problemática a data atribuída ao “Adversus Iudaeos”, que se apresenta como o complemento de uma disputa não terminada entre um cristão e um prosélito judaico e que expõe os pontos principais da controvérsia judaico-cristã. A obra, cuja autenticidade foi longamente discutida, remontaria a 200 dC ou, segundo outros, a antes de 197. Pouco antes de 200 parece ter sido composto o “De testimonio animae, escrito apologético em que se recorre ao testemunho da alma para demonstrar a existência de Deus e outras verdades afirmadas pela doutrina cristã. Entre 200 apr. E 206, coloca-se uma importante série de tratados morais, exatamente: o “De spetaculis” (condenação dos jogos do circo, do estádio e do anfiteatro e proibição para os cristãos de neles participar), o “De oratione (sobre a oração e, especialmente, sobre o Pai-nosso), o “De patientia” (sobre a importância da “patientia” cristã, da qual Jesus deu o exemplo), o “De paenitentia” (sobre a primeira “penitência” necessária para se receber o batismo, e sobre a segunda, depois do sacramento da iniciação, que precede a reconciliação eclesiástica), o “De cultu feminarum” (sobre as vestes e os ornamentos das mulheres e a necessidade da modéstia), em 2 livros, o “Ad uxorem” (espécie de testamento espiritual em que se recomenda à esposa não passar para segundas núpcias), em 2 livros. Ao mesmo período pertencem três outras obras importantes: o “De baptismo”, contra a seita dos cainitas (sobre o batismo, sua necessidade, seus efeitos, invalidade do batismo administrado pelos hereges), o “De praescriptione haereticorum” (sobre o direito de possuir e, por conseguinte, de interpretar as Sagradas Escrituras, reservado não aos hereges, mas somente à Igreja, que é sua herdeira por via de transmissão legítima, tendo ela recebido as Escrituras de Cristo através dos apóstolos; sobre os motivos pelos quais as heresias estão no erro. O termo “praescriptio” de nosso autor foi entendido em pelo menos dois sentidos: com valor propriamente jurídico e com valor retórico e dialético), e, enfim, o “Adversus Hermogenem” (uma defesa da doutrina cristã da criação contra aqueles, entre os gnósticos, que consideravam a matéria como eterna).
Nos tratados compostos a começar de 207, nota-se uma influência sempre mais nítida do montanismo, o movimento religioso frígio, nascido na segunda metade do séc. II, ao qual Tertuliano está para aderir. De 207 a 212 sucedem-se vários escritos de cunho doutrinal e antignóstico: os quatro primeiros livros do “Adversus Marcionem”; trata-se da terceira edição de uma obra já elaborada anteriormente (contra Marcião e contra sua tentativa de separar o Deus do AT daquele do NT), o “Adversus Valentinianos” (exposição e refutação da doutrina dos gnósticos valentinianos), o “De anima” (em torno da natureza, da origem, do desenvolvimento e do destino da alma, que é ao mesmo tempo refutação de doutrinas heréticas), o “De carne Christi” (sobre a Encarnação do Senhor), o “De resurrectione mortuorum” (sobre a segunda vinda de Cristo, a salvação do elemento corporal, destinado a reconjugar-se com a alma, a exigência do Juízo e a necessidade da ressurreição), o V livro do “Adversus Marcionem”. Nesta grande empresa doutrinal, Tertuliano parece querer expor os pontos essenciais da ‘regula fidei’ numa moldura que, de propósito, tem presente as dificuldades e as objeções dos heréticos, e, mais em geral, a mentalidade e a cultura de seu tempo. Outras obras, compostas neste período de sua atividade literária, a mais intensa e fecunda, têm caráter moral e prático, e de modo claro revelam a tendência montanista do escritor: como acontece com o “De exhortatione castitatis” (ainda sobre as segundas núpcias, e com atitude mais rígida), com o “De virginibus velandis” (sobre a necessidade de que as virgens tragam o véu não apenas na igreja, mas em todo lugar público), com o “De corona” (diz respeito à incompatibilidade entre cristianismo e serviço militar), com o “Scorpiace” ou remédio contra a mordida do escorpião, quer dizer, contra a heresia gnóstica, em que se exalta o valor do martírio, negado pelos hereges. O “Ad Scapulam” é como uma carta aberta, de natureza apologética, endereçada ao procônsul da África Scapula que, por volta de 211, havia começado a perseguir os cristãos. Sobre o “De idolatria” (contra toda prática idolátrica e contra toda atividade e profissão que esteja em contato com ela), os pareceres sobre sua data estão divididos: se muitos historiadores consideram ter sido composto pouco antes de 212, outros propõe 197 ou os anos imediatamente posteriores (é o caso também de “De pallio”, uma resposta polêmica e amarga do escritor, dirigida a todos aqueles seus concidadãos que dele zombavam por haver deixado a toga romana para vestir a capa dos filósofos: em sua brevidade e obscuridade, foi classificado ora como o primeiro, ora como o último dos tratados de Tertuliano, ou foi colocado em período intermédio).
No terceiro e último período vemos o escritor africano já militando, contra a Grande Igreja, no partido dos montanistas. Interrogou-se acerca do caráter do montanismo africano comparado com aquele da Frigia; e se alguns críticos supuseram diferenças, outros as negaram, identificando o primeiro com o chamado movimento tertulianista (cf. D. Powell, ‘Tertullianists and Cataphrygians’, p. 33s). A partir de 212-213, enumeram-se o “De fuga in persecutione” (sobre a inadmissibilidade de fuga durante a perseguição), o “Adversus Praxeam” (contra o patripassiano Práxeas expõe-se a doutrina sobre a Trindade), o “De monogamia” (ainda contra as segundas núpcias, com textos mais radicais e tons mais duros), o “De ieiunio adversus Psychicos” (defesa da prática montanista sobre o jejum e ataque aos ‘psychici’, isto é, aos católicos, acusados de serem laxistas) e o “De pudicitia”, onde se nega à Igreja o direito de perdoar os pecados, reservando-o aos “homens espirituais”, quer dizer, aos apóstolos e aos profetas; afirma-se que alguns pecados gravíssimos (idolatria, fornicação, homicídio) não têm perdão de ninguém e se tem em mira um bispo que, a respeito do último ponto, expressou opinião oposta. A parábola religiosa de Tertuliano chegou assim a seu termo: a polêmica posta em ato por ele está em seu cume, tanto que várias idéias que se lêem nas últimas obras estão em contradição com outras, de obras precedentes.
Jerônimo (cf. De vir. Ill. 53) assinala um motivo de difícil verificação que teria levado o escritor africano para a órbita do montanismo: a invidia e as contumeliae que o clero de Roma teria manifestado contra ele num conflito de que ignoramos todas as minúcias e que, se realmente existiu, se pode supor ter-se relacionado justamente com questões disciplinares; nem se pode, a este respeito, esquecer do rancor que Jerônimo tinha para com o clero de Roma. Com probabilidade, circunstâncias exteriores e afinidades interiores o induzem a aderir ao movimento montanista, permitindo-lhe levar às extremas consequências um ideal de vida rígido e sem meias medidas, para o qual sempre havia sentido uma propensão; solução esta favorecida certamente pela concepção que Tertuliano tem da moral: seu espírito ascético e rigorista era fustigado pelas noções de justiça, retribuição, temor, também esperança, mas não parece inspirado suficientemente pelo amor. Neste sentido, o montanismo havia apenas acelerado um processo iniciado bem antes, brotado da profunda esperança pessoal do homem.”
Apesar de suas contradições, as obras de Tertuliano são decisivas para a formação e consolidação da Igreja primitiva. Primeiramente, ele valeu-se de seus estudos jurídicos para enriquecer o vocabulário teológico com termos, por assim dizer, importados do Direito, como “sacramentum”, que originalmente significava a entrega de uma soma para um processo e, depois, o juramento militar do recruta. Tertuliano cria um neologismo para essa palavra, aplicando-a ao engajamento batismal a serviço de Cristo. Por “persona” ele traduz o grego “hypostasis” (substância) ou “prosopon” (máscara, pessoa), em que a pessoa representa um papel sem perder sua individualidade, para usar a palavra para as pessoas da Trindade.
Seu livro “A Oração” (“De oratione”) foi o encanto de gerações, onde ele comentava o Pai-Nosso, desenvolvendo as condições e as características da oração cristã. Eis o preâmbulo (Adalbert – G. Hamman em “Os Padres da Igreja”, Ed. Paulus, 1995, pág. 73):
Apesar de suas contradições, as obras de Tertuliano são decisivas para a formação e consolidação da Igreja primitiva. Primeiramente, ele valeu-se de seus estudos jurídicos para enriquecer o vocabulário teológico com termos, por assim dizer, importados do Direito, como “sacramentum”, que originalmente significava a entrega de uma soma para um processo e, depois, o juramento militar do recruta. Tertuliano cria um neologismo para essa palavra, aplicando-a ao engajamento batismal a serviço de Cristo. Por “persona” ele traduz o grego “hypostasis” (substância) ou “prosopon” (máscara, pessoa), em que a pessoa representa um papel sem perder sua individualidade, para usar a palavra para as pessoas da Trindade.
Seu livro “A Oração” (“De oratione”) foi o encanto de gerações, onde ele comentava o Pai-Nosso, desenvolvendo as condições e as características da oração cristã. Eis o preâmbulo (Adalbert – G. Hamman em “Os Padres da Igreja”, Ed. Paulus, 1995, pág. 73):
Em sua obra “Apologeticum”, Tertuliano faz as vezes de um advogado ao defender o Cristianismo. Assim, por exemplo, referindo-se à carta na qual Trajano ordenou a Plínio que condenasse aqueles cristãos acusados diante dele, mas que não perseguisse aqueles que não eram acusados, Tertuliano escreve:
Ó miserável pronunciamento – de acordo com as necessidades do caso, uma incoerência! Proíbe de irem à procura deles como se fossem inocentes, e ordena que sejam punidos como se fossem culpados. É ao mesmo tempo misericordioso e cruel; ao mesmo tempo, ignora e pune. Por que fazes um jogo de palavras contigo mesmo, Ó Julgamento? Se condenas, porque também não inquires. Se não inquires, por que também não absolves?”
"Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 168"
Prova de sua inteligência argumentativa é também a sua “Praescriptione haereticorum” (“Prescrição contra os hereges”), em que usa a palavra “prescrição” principalmente no seu sentido jurídico, valendo-se de um argumento definitivo: “se os hereges não têm direito de usar as Escrituras, torna-se impossível para eles discutir com aqueles que possuem e defendem a ortodoxia, a fim de desviá-los da verdadeira fé. A “praescriptio” é total: os hereges estão excluídos de qualquer discussão; somente as igrejas ortodoxas e apostólicas têm o direito de determinar o que é e o que não é doutrina cristã” (Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 173).
Entretanto, é na sua obra “Adversus Praxean” (“Contra Práxeas”), que Tertuliano atingiu o cume de suas formulações teológicas, ao defender a doutrina da Trindade. Pouco se sabe sobre Práxeas, a não ser que ele parece ter vindo da Ásia Menor, onde conhecera tanto o monarquianismo como o montanismo, acabando por aceitar o primeiro e rejeitar o último. Chegando em Roma, Práxeas foi bem recebido, combatendo o montanismo e expandindo o monarquianismo, com ênfase no patripassianismo (o sofrimento e morte do Deus Pai), a ponto de Tertuliano atribuir-lhe essa infame dupla função: “fez um duplo serviço para o diabo em Roma: ele afugentou a profecia, e introduziu a heresia; ela afastou o Espírito e crucificou o Pai”.
Ainda valendo-se da terminologia jurídica que lhe era própria e familiar, Tertuliano desenvolveu a doutrina da Trindade, como Justo L. González expõe:
“De acordo com ele, Práxeas afirma que a distinção entre o Pai e o filho destrói a “monarquia” de Deus, mas não compreende que a unidade da monarquia não requer que ela seja sustentada por uma só pessoa. “Monarquia”, este termo tão acalentado por Práxeas e seus seguidores, significa simplesmente que um governo é único, e nada impede o monarca de ter um filho ou de administrar sua monarquia como lhe aprouver – o que Tertuliano chama de “economia” divina. Além do mais, se o pai assim quiser, o filho pode participar na monarquia sem com isso destruí-la. Portanto, a monarquia divina não é razão para se negar a distinção entre o Pai e o Filho, como alegado pelos “simples, na verdade, eu não quero chamá-los de insensatos e ignorantes”, que negam tal distinção.
Mas isto não é suficiente para refutar Práxeas, pois é necessário explicar como é possível que o Pai, o Filho e o Espírito Santo sejam um só Deus e que eles, contudo, sejam diferentes. Aqui Tertuliano apela novamente para sua formação legal e introduz dois termos que a igreja continuaria usando por muitos séculos: “substância” e “pessoa”. O termo “substância” deve ser entendido aqui, não num sentido metafísico, e sim num sentido legal. Dentro deste contexto, “substância” é a propriedade e o direito que uma pessoa tem de fazer uso dessa propriedade. No caso da monarquia, a substância do Imperador é o Império, e é isto que torna possível para o Imperador partilhar sua substância com seu filho – como de fato era comum no Império Romano. “Pessoa”, por outro lado, deve ser entendida como “pessoa jurídica” e não no sentido comum. “Pessoa” é alguém que tem uma certa “substância”. É possível que várias pessoas participem de uma substância, ou que uma pessoa tenha mais de uma substância – e essa é a essência da doutrina de Tertuliano a respeito não apenas da Trindade, mas também a respeito da pessoa de Cristo.
Com base nesses conceitos de substância e pessoa, Tertuliano afirma a unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo sem negar sua distinção: os três compartilham uma única e indivisível substância, mas isto não os impedem de serem três pessoas diferentes:
Três, no entanto, não em condição, mas em grau; não em substância, mas em forma; não em poder, mas em aspecto; todavia de uma substância, e de uma condição, e de um poder, porque ele é um Deus, de quem três graus e formas e aspectos são contados, sob o nome de Pai, de Filho e de Espírito Santo.”
"Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 174/5"
Como lembra Paul Tillich (“História do Pensamento Cristão”, Ed. Aste, 2000, pág. 61), “a palavra ‘trinitas’ aparece pela primeira vez nos escritos de Tertuliano. Embora Deus seja um só, ele nunca está só. Diz Irineu: “Estão sempre com ele a palavra e a sabedoria, o Filho e o Espírito, por meio dos quais tudo fez livre e espontaneamente”. Deus é sempre Deus vivo. Não está só. Não é uma identidade morta. Mantém em si para sempre a palavra e a sabedoria. Palavra e sabedoria são símbolos de sua vida espiritual, da sua auto-manifestação e da sua auto-realiação. O motivo da doutrina da trindade é esse falar de Deus em termos de Deus vivo, para tornar compreensível a presença do divino como fundamento vivo e criativo do mundo. Segundo Irineu, esses três são um só Deus porque possuem uma só ‘dynamis’, um só poder de ser, uma só essência, a mesma potencialidade. “Potencialidade” e “dinâmica” são termos latinos e gregos para significar o que expressamos em nossa língua pelo termo “poder de ser”. Tertuliano falava da substância divina uma desenvolvida na economia triádica. “Economia” significa “construção”. A divindade se constrói eternamente em unidade. Rejeita-se definitivamente qualquer interpretação politeísta da trindade. Por outro lado, Deus se estabelece como ser vivo, em contraposição à identidade morta. Assim Tertuliano empregou a fórmula “una substantia, três personae”, para falar de Deus”.
Entretanto, não foi só quanto à doutrina da Trindade que “Adversus Praxean” foi de suma importância para a formulação teológica da Igreja primitiva. Também no campo da Cristologia, uma frase “solta” do capítulo 27:11, “videmus duplicem statum, non confusum sed coinunctum in uma persona, deum et hominem Iesum” (“vemos o duplo estado, não confuso mas unido em uma só pessoa, o Deus e homem Jesus”) foi de vital importância para a definição da natureza de Jesus no Concílio de Calcedônia, em 451 d.C. Ainda que essa fórmula tenha passada quase desapercebida por mais de 200 anos, e tenha encontrado em Agostinho o seu, por assim dizer, recuperador, defensor e aperfeiçoador, chama a atenção o fato de Tertuliano tê-la colocado mais de dois séculos à frente do símbolo calcedônio, o que revela o quanto era avançado para o seu tempo.
Ainda são nebulosas as razões que teriam levado Tertuliano a aderir ao partido dos montanistas. Supõe-se que tenham sido decisivos para esta adesão o crescente poder da hierarquia eclesiástica e a sua tolerância em lidar com os pecadores arrependidos (principalmente aqueles que negavam a Cristo para fugir à perseguição e depois queriam retornar à Igreja). Jerônimo cita um motivo difícil de se comprovar, que teria levado Tertuliano às trincheiras montanistas: um suposto conflito dele com o clero de Roma. Considerando-se que o próprio Jerônimo vivia às voltas com crises com o clero romano, suas palavras devem ser recebidas com o cuidado da dúvida.
Entretanto, Paul Johnson afirma em seu livro “História do Cristianismo” (ob. cit., págs. 99/100), que:
“A gota d’água para Tertuliano ocorreu, segundo ele, quando um “grande bispo” (provavelmente Calixto de Roma) decidiu que a Igreja tinha o poder de conceder a remissão de pecados após o batismo, mesmo de pecados sérios como o adultério ou mesmo a apostasia. Foi essa reivindicação em benefício do clero – para ele, inconcebível – que fez do antigo flagelo dos hereges, por assim dizer, o primeiro protestante. E, uma vez tendo renegado os direitos clericais a esse respeito, Tertuliano foi levado, paulatinamente, a questionar os clamores clericais em favor da discriminação de status na Igreja. Em seus tempos de ortodoxia, atacara os hereges montanistas por ‘conferirem até à laicidade as funções do sacerdócio’. Agora, tendo repudiado o poder penitencial, tornou-se ele próprio montanista, pedindo, em “De Exhortatione Castitatis”:
‘não somos também sacerdotes leigos? (...) a diferença entre a ordem e as pessoas deve-se à autoridade da Igreja e à consagração de sua categoria pela reserva de um ramo especial para a ordem. Porém, onde não há assento de clero, você oferece e batiza e é seu único sacerdote. Pois, onde houver três, existirá uma igreja, ainda que sejam leigos (...) você tem os direitos de um sacerdote em sua própria pessoa, quando surgir necessidade.’
Desse modo, Tertuliano atacava bispos que apresentavam o que ele denominava ‘brandura’ no perdão dos pecadores e decaídos. Apelava para o ‘sacerdócio de todos os crentes’ contra os direitos ‘usurpados’ de determinados oficiantes, o ‘senhorio’ não-espiritual, a ‘tirania’ dos clérigos. Mesmo uma mulher, se falasse com o espírito, tinha mais autoridade, nesse sentido, que o maior dos bispos. Este representava um ofício vazio; ela, o espírito vivo. A divisão era bem delineada – entre uma Igreja de devotos, que administravam a si próprios, e uma imensa ralé de devotos e pecadores, que tinha de ser administrada por um clero profissional. Como poderia tal Igreja ser equacionada com a doutrina clara de S. Paulo? Tertuliano leu Romanos, como faria Lutero. O Espírito, a seu ver, não relaxa seu rigor; julga sem parcialidade nem leniência e jamais perdoará alguém em pecado mortal.”
Fonte: www.e-cristianismo.com.br
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